‘EVITAR TRAGÉDIAS’|: Pesquisador afirma que ataque de onça é raro e deixa alerta sobre linha de segurança entre humanos e animais

DA REDAÇÃO:LEIAMT

A morte do caseiro Jorge Ávalos, 60, conhecido como Jorginho, atacado por uma onça-pintada na última segunda-feira (21) em uma área de mata próxima a um pesqueiro, na zona rural do município de Aquidauana (MS) repercutiu nas redes sociais e causou a comoção, mas também despertou a fúria de outros em relação ao animal. Em comentários de postagens sobre o caso, internautas chegaram a defender a caça dos animais e até seu extermínio diante do fato.

Para reportagem, o médico veterinário e mestre da Universidade Estadual Paulista, Paul Raad, explica que conflitos entre animais selvagens e humanos acontecem em diversas partes do mundo. No Pantanal, um dos mais importantes refúgios da onça-pintada, essa realidade se manifesta no encontro entre a espécie e a atividade pecuária, uma das principais economias da região, gerando conflitos históricos que colocam em risco tanto os grandes felinos quanto a subsistência de muitas famílias pantaneiras.

Ele, que também é coordenador do projeto de coexistência humano e fauna, descreve que o conflito começa quando o gado, especialmente bezerros, é predado por onças. “Isso acontece, em grande parte, porque a expansão urbana e a diminuição de presas naturais incentivam o felino a buscar presas mais fáceis e abundantes. Além disso, a criação extensiva, com gado solto em áreas abertas e pouca vigilância, facilita o ataque. Em resposta, muitos pecuaristas recorrem à retaliação letal, prática proibida por lei, porque compromete diretamente a conservação da espécie e não traz resolução”, explica.

Embora as onças normalmente evitem o contato com seres humanos, algumas situações podem representar risco, como, por exemplo, encontros com animais no período de cio, com filhotes, momentos de alimentação, eventos de caça ilegal, presença de cães ou outras ações que interfiram no seu comportamento habitual.

“É fundamental alertar para o perigo da prática ilegal da ‘ceva’, que é a atração de onças com o uso de carcaças ou presas vivas. Essa prática utilizada para fins turísticos pode alterar o comportamento dos felinos, fazendo com que percam o medo natural do ser humano e associem pessoas à presença de alimento. Isso aumenta significativamente o risco de incidentes, além de configurar um crime ambiental”, acrescenta o veterinário.

Uma “barreira invisível” entre seres humanos e animais silvestres, ou seja, a distância natural de desconfiança, foi construída ao longo da evolução. De acordo com o pesquisador, essa limitação é fundamental para a segurança de ambos os lados.

“Práticas culturais como o costume de carnear animais nas margens dos rios, incluindo porcos, peixes, bois e, em alguns casos, até búfalos e jacarés, e deixar vísceras e carcaças ao ar livre, acabam criando locais de descarte inadequado que atraem grandes predadores, como a onça-pintada. Essa forma indireta de ceva, considerada não intencional, pode levar esses animais a associar as áreas habitadas por humanos como fontes de alimento, favorecendo a perda do medo e quebrando essa barreira”, descreve.

Espécies como onças, antas, jacarés, búfalos e até mesmo animais aparentemente inofensivos como quatis, capivaras e macacos podem se tornar uma ameaça quando os limites naturais de convivência são ultrapassados.

O pesquisador avalia que, embora casos como o ocorrido no Pantanal sejam raros, eles evidenciam a importância de políticas públicas e práticas privadas que promovam o turismo consciente, a pesca responsável e estratégias de mitigação de conflitos entre humanos e a fauna. “A prevenção é o caminho mais eficaz para evitar tragédias semelhantes, protegendo tanto as comunidades quanto os próprios animais”, aconselha.

Segundo Paul, é necessária a adoção de medidas de redução de conflitos, como a instalação de cercas elétricas e repelentes luminosos em propriedades situadas em áreas de risco. Além disso, a presença de materiais informativos com linguagem acessível contribui para a educação da comunidade local sobre práticas de convivência segura em regiões habitadas por grandes felinos.

Diversos pesquisadores vêm buscando aperfeiçoar caminhos de coexistência por meio de estratégias anti-predação que vêm sendo aplicadas no Pantanal e em outras regiões.

“Essas estratégias são adaptadas conforme a realidade de cada produtor, variando do manejo estratégico dos animais até a instalação de currais elétricos e luzes repelentes. Diversos estudos têm demonstrado a eficácia da adoção dessas técnicas, reduzindo os prejuízos e respeitando a conservação da espécie. Como resultado prático, um trabalho realizado na Fazenda Ipiranga, conhecida como Pousada Piuval, demonstrou uma redução de 80% das perdas nas áreas mais afetadas”, conta.

Ele ainda aponta que o diálogo com as comunidades locais é importante para construir soluções conjuntas, com respeito aos saberes tradicionais. “Conservar a onça-pintada não é apenas proteger um símbolo da biodiversidade brasileira, é garantir o equilíbrio ecológico e valorizar o modo de vida e a cultura pantaneira”, defende.

O caso

Conforme noticiado nacionalmente, relatos e vídeos de moradores das proximidades do local conhecido como ‘Touro Morto’ próximo aos rios Miranda e Aquidauana, no Pantanal, onde Jorginho atuava como caseiro, apontam a presença frequente de onças-pintadas na propriedade, que aparentavam estar habituadas à presença humana. Pegadas da espécie foram identificadas no local, mas até o momento não há confirmação oficial sobre a dinâmica dos fatos.

Na madrugada de quinta-feira (24) uma onça macho, que pode ter sido responsável pela morte do caseiro, foi capturada pela Polícia Militar Ambiental com uso de armadilhas, três dias após o ataque. Foi verificado que o animal está abaixo do peso, que deveria pesar em torno de 120 quilos. Esse fator será investigado para apurar se foi determinante para o ataque ao caseiro.

Governo Mato Grosso do Sul

Segundo o governo do Estado do Mato Grosso Sul, o animal está em um Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), em Campo Grande, onde irá passar por exames e acompanhamento veterinário. O secretário-adjunto da Semadesc (Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação), Artur Falcette, ressaltou respeito à família da vítima e informou que o animal deve ficar no CRAS para realização de exames e procedimentos de estabilização e recuperação, e será integrado a um programa federal e direcionado pelo ICMBio.

De acordo com o professor e pesquisador Gediendson Araújo, especialista em animais de grande porte, do Reprodução para Conservação (Reprocon), além do apoio do Instituto de Meio Ambiente de MS (Imasul), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que participou da ação de captura da onça, o caso é considerado atípico.

“É um caso muito atípico, mas está muito relacionado a presença e aceitação de um animal silvestre à presença de humanos. O animal perdeu o medo de ver o homem como um predador, e acabou tendo essa situação com esse desfecho. Então a coisa é incomum de acontecer, são poucos os relatos, e é uma pena que teve uma perda humana”, disse Araújo.

gazetadigital.

Você pode gostar...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *